quarta-feira, 25 de maio de 2016

Fogo-pagô no quintal









Coisas estranhas têm acontecido em nosso país. Deputados e senadores afastaram a presidente da república (impeachment!). Segundo esses políticos, a presidente teria cometido crime de responsabilidade, mesmo ela não tendo se envolvido em corrupção. O vice-presidente assumiu e formou um governo composto por – adivinhe? – políticos acusados de corrupção. A principal notícia de ontem foi uma gravação em que o principal ministro do “novo” governo revela que o impeachment não foi em função de nenhum crime de responsabilidade, mas para montar um governo com o vice-presidente e blindar os corruptos. Falou-se que havia (há) um golpe em curso, mas algumas pessoas preferiram acreditar no apresentador do telejornal e no juiz cuja pose em intocável terno preto nos lembra Mussolini e o fascismo.
Como muitos brasileiros, já acordo pensando nos estranhos acontecimentos que estamos vivendo. Sento-me para tomar café e minhas divagações são repentinamente interrompidas por um som que se repete: fogo pagô, fogo pagô, fogo pagô. Levanto-me e vou até o quintal. Fogo pagô, fogo pagô, fogo pagô, continua aquela linda música, que desde a infância não ouvia. Chamo toda a família para o quintal; caras apreensivas.
- Sabem o que acabo de descobrir? Nós temos uma fogo-pagô no quintal.
- O quê?
- Uma rolinha fogo-pagô. Escutem.
E, como se tivesse me ouvido e me obedecesse, a fogo-pagô repete o seu canto: fogo pagô, fogo pagô, fogo pagô...
Convoco todos a descobrir onde o passarinho se esconde. Começa a procura, que não demora. A fogo-pagô está no alto do pé de goiaba. Com a nossa aproximação, a ave silencia. Mas aí somos nós que permanecemos quietos por uns minutos, e a fogo-pagô volta a cantar. Para nossa surpresa, a “nossa” fogo-pagô canta em dupla: outra rolinha fogo-pagô responde do quintal vizinho. Escutamos. Elas dialogam entre os quintais. Mexo-me para tentar ver melhor a fogo-pagô – então ela voa para o quintal vizinho.
Entramos.
Estou indo para o trabalho. Antes de sair, volto a ouvir: fogo pagô, fogo pagô, fogo pagô... Ah se pudesse levá-la comigo! Como não posso, resta me confortar com a ideia de que amanhã de manhã ouvirei de novo o seu canto e de novo me encantarei, como se fosse a primeira vez.
Que bom seria se pudesse passar o dia a ver e ouvir os passarinhos cantadores... Mas sou logo afetado pelos estranhos acontecimentos relatados no início da crônica: não posso alienar-me da realidade do país. Tenho que continuar denunciando os homens sórdidos que mentem, manipulam, roubam e que podem exterminar florestas e vidas e aniquilar as aves que cantam e os homens e as mulheres que ainda se encantam.


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